A Lei Complementar nº 187/2021 não pode estabelecer critérios econômicos e financeiros para a obtenção da imunidade das contribuições sociais
Num estudo com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF verificamos que a lei complementar nº 187/2021 não serve para criar critérios econômicos e financeiros para obtenção da imunidade das contribuições sociais previstas no Art. 195, parágrafo 7º da Constituição Federal.
Cumpre-nos inicialmente destacar que a jurisprudência do STF é pacífica em reconhecer que o substantivo “isenção”, disposto no artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição Federal, é na realidade uma verdadeira imunidade[1].
Da inconstitucionalidade material – no Recurso Extraordinário nº 767.332, que obteve Repercussão Geral, foi tratada a não incidência do IPTU em bens imóveis temporariamente ociosos, de propriedade das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos. A Corte Suprema decidiu que a imunidade tributária do imposto deve ser assegurada desde que as entidades sem fins de lucro atendam aos requisitos da lei[2].
Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), a imunidade tributária, prevista no artigo 150, VI, “c” da Constituição Federal é uma imunidade material. Essa imunidade visa impedir a incidência de qualquer tributo sobre os bens de pessoas jurídicas sem fins de lucro ou entidades assistenciais que, em razão de sua natureza ou finalidade, garantam à população serviços essenciais descritos no texto constitucional como direitos fundamentais.
No Recurso Extraordinário nº 566.622, que também obteve Repercussão Geral, discutiu-se a constitucionalidade da redação original do artigo 55 da Lei nº 8.212, de 24/07/91, à luz do previsto no artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição Federal. No mérito da decisão dessa ação, fica disposto:
A definição do alcance formal e material do segundo requisito, a observância de “exigências estabelecidas em lei”, deve, portanto, considerar o motivo da imunidade em discussão – a garantia de realização de direitos fundamentais sociais. Qualquer interpretação que favoreça obstáculos ao alcance desse propósito há de ser evitada, cabendo prestigiar aquela que beneficie a conquista da função política e social própria do § 7º do artigo 195 do Diploma Maior. G.n
A simples leitura da citação acima nos permite dispor que a imunidade tributária das contribuições sociais prevista no parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição Federal é também uma imunidade material.
Ou seja, tanto a imunidade das contribuições (Art. 195, §7º) quanto à imunidade dos impostos (Art. 150, VI, c) visam impedir a incidência de quaisquer tributos sobre os bens de pessoas jurídicas sem fins de lucro ou entidades assistenciais que, em razão de sua natureza ou finalidade, atendam aos requisitos do texto constitucional. Isto posto, o fundamento das imunidades tributárias é a preservação de determinados valores considerados relevantes pela Constituição Federal, como a atuação das entidades beneficentes de assistência social.
Quer dizer, toda instituição assistencial sem fins de lucro (natureza) que disponha de seus bens para servir à população, prestando serviços essenciais (educação, saúde e assistência social – finalidade) descritos no texto constitucional como direitos fundamentais não podem sofrer com qualquer interpretação que venha a criar obstáculos ao alcance de seus propósitos. Cabe ao judiciário prestigiar aquilo que beneficie a conquista da função política e social estabelecida no § 7º do artigo 195, da Constituição Federal.
Portanto, as imunidades tributárias foram atribuídas à categoria de princípios constitucionais, devido à sua preeminência, peso e influência sobre as outras modalidades legais, estando estritamente correlacionadas com os direitos fundamentais.
Notadamente, essas decisões do Supremo Tribunal Federal trazem insegurança jurídica diante da decisão da ADI 4480, isso porque a tese fixada nessa ação descreve que cabe à lei complementar fixar contrapartidas para o reconhecimento da imunidade do § 7º do artigo 195, da CF/88.
Ora, se os recursos extraordinários apontados acima reconhecem a natureza de imunidade material dos dispositivos apontados na Constituição e que essas imunidades materiais impedem a incidência de qualquer tributo sobre o patrimônio, renda ou serviços de pessoas jurídicas sem fins lucrativos ou mesmo filantrópicas que se colocam à disposição da sociedade prestando serviços essenciais descritos como direitos fundamentais, por que a decisão da ADI 4480 não se colocou no mesmo sentido?
Diante das constatações realizadas e da questão de insegurança jurídica apontada acima, indaga-se novamente: como interpretar o substantivo “lei”, disposto no parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição Federal?
Para responder a essa última questão, vamos dispor da analogia e do princípio de direito da isonomia utilizados no Recurso Extraordinário nº 566.622, que obteve repercussão geral, como já mencionamos:
A imunidade recíproca, versada na alínea “a” do preceito constitucional, tem em vista a relevância do princípio federativo e da isonomia entre os entes políticos – artigo 1º, cabeça, da Carta. O dispositivo proíbe União, estados, Distrito Federal e municípios de instituírem impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços uns dos outros, com o propósito, consoante Roque Carrazza, de evitar que determinada pessoa política impeça outra de cumprir objetivos institucionais em razão de dificuldades econômicas geradas pela incidência de impostos. Se não existisse a regra de imunidade, diz o acatado tributarista, poderia haver um estado de sujeição em vez de isonomia entre os entes federados (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 761- 762). Esse propósito nuclear orienta a interpretação de modo que a imunidade seja assegurada até o ponto em que a tributação não represente restrição à autonomia política dos entes.
Parafraseando a citação utilizada na decisão do R.Ext. nº 566.622, as imunidades tributárias (impostos e contribuições sociais) contidas no texto constitucional, cumprem com uma relevância no pacto federativo, pois além de proibirem a União, os estados, o Distrito Federal e municípios de instituírem impostos e contribuições que atinjam o patrimônio, a renda e os serviços uns dos outros, cumprem também com a defesa do patrimônio, a renda e os serviços das instituições sem fins de lucros e filantrópicas que veem como auxílio ao Estado para prestar serviços essenciais à sociedade.
Quanto à assertiva, a livre iniciativa sem fins de lucro e filantrópica que vem no auxílio ao Estado, o R.Ext nº 566.622, assim dispõe:
O constituinte objetivou estimular a criação de (…)
Buscou também incentivar a iniciativa privada no auxílio ao Estado para cumprimento dos deveres e das funções sociais previstas nos artigos 6º, 196 – saúde –, 203 – assistência social – e 205 – educação. A definição do âmbito normativo da imunidade não pode ser alheia a esses fins políticos e sociais, de extrema relevância, visados pela Constituição, de tal forma que a interpretação que considere essas conexões valorativas será sempre a mais pertinente.
No sentido posto, a interpretação do substantivo “lei”, disposto no artigo 195, § 7º, da Constituição Federal, não pode ensejar uma interpretação restritiva do texto constitucional. A interpretação do parágrafo 7º do artigo 195 deve ser a mais ampla possível, observando a natureza das instituições e suas finalidades, como descrito nos Recursos Extraordinários acima.
Em suma, o objetivo da imunidade prevista no art. 195, § 7º da Constituição Federal não é conceder um mero favor fiscal. Muito pelo contrário, é outorgada para estimular a prestação de assistência social, em caráter beneficente, por aquelas instituições que trabalham ao lado e em auxílio ao Estado na proteção das camadas sociais mais pobres, que são excluídas do próprio acesso às condições mínimas de dignidade.
Não podemos nos esquecer de que o Brasil é um dos maiores países do mundo, sua área territorial de 8.515.759 quilômetros quadrados, com 5.568 municípios, além do Distrito Estadual de Fernando de Noronha e do Distrito Federal, e essa extensão territorial traria aos entes federativos dificuldades de orçamento para atender a população em todos os lugares, assim, o constituinte originário chamou a livre iniciativa ao auxílio ao Estado.
Ou seja, o constituinte originário, prevendo as dificuldades do Estado brasileiro com orçamento e sua execução para garantir os serviços essenciais de educação, saúde e assistência social, chamou a livre iniciativa, com ou sem fins de lucro e filantrópicas, para a prestação dos serviços essenciais em toda a extensão territorial do país, garantindo imunidades para essas instituições.
Dá inconstitucionalidade formal, notadamente o dispositivo do parágrafo 7º do artigo 195, da Constituição Federal, que dispõe sobre a imunidade das contribuições para a seguridade social das entidades beneficentes de assistência social, estabelece que essas instituições devam atender às exigências estabelecidas em lei.
A redação desse dispositivo constitucional traz ambiguidade, e, assim, várias interpretações são realizadas. Entretanto, como visto nos julgados apresentados, as imunidades tributárias servem para defender os bens materiais das instituições sem fins de lucro que se dedicam à prestação de serviços essenciais de educação, saúde e assistência social à sociedade, e, dessa forma, a lei complementar não poderia dispor daquilo que o texto constitucional não dispõe.
Ou seja, a educação, saúde e assistência social são direitos dispostos no texto constitucional e se apresentam como garantias individuais, direitos fundamentais sociais (CF, Art. 6º), que devem ser garantidos pelo Estado. Assim, esses direitos se configuram como cláusulas pétreas, verdadeiros limites materiais à reforma da Constituição.
O artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal descreve que esses direitos não podem ser objeto de deliberação tendente a aboli-los, nem por emenda constitucional, e diante da extensão territorial do Brasil, orçamento e execução, o constituinte originário estimulou a livre iniciativa no auxílio ao Estado brasileiro com as imunidades tributárias.
As cláusulas pétreas expressam a impossibilidade, instituída pelo legislador constituinte, de modificar regras estruturais ou garantias constitucionais. Essa impossibilidade é vislumbrada nas normas que emitem os efeitos jurídicos da imunidade tributária. Isto quer dizer que inexiste possibilidade de o legislador ordinário restringir, modificar (diminuir) ou mutilar (totalmente ou parcialmente) os preceitos fundamentais que versam sobre imunidade tributária.
Diante dessa constatação, o Supremo Tribunal Federal na ADI 939-7, em 1992, tratando da imunidade tributária prevista no artigo 150, VI, c, pronunciou-se afirmando que a imunidade tributária desse dispositivo tem natureza de cláusula pétrea.
Nos fundamentos da decisão da ADI 939-7, podemos verificar os seguintes argumentos: as imunidades tributárias servem às garantias fundamentais, previstas no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal. Essas imunidades tributárias protegem direitos, ou seja, garantem os direitos individuais e são essenciais para a manutenção da democracia e do Estado de Direito. Na ADI 4357, o STF, dispondo da medida cautelar na ADI 2356, assim dispõe:
Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade da EC nº 30/2000, que, ao incluir o art. 78 no ADCT …
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- A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas.
Ainda da Adi 4357, o STF dispõe:
Nesses termos, esta Corte tem assentado que “(…) as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege (…).” (ADI 2.024/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJe de 22/6/07). Com efeito, a teor da previsão expressa do art. 60, § 4º, CF/88, não resta vedado ao Poder Constituinte Derivado toda e qualquer restrição às chamadas cláusulas pétreas, mas somente aquelas que atinjam núcleo essencial desses limites materiais; veda-se, tão somente, as propostas de emendas tendentes a abolir as cláusulas pétreas.
De outra forma, na decisão da ADI 4357, podemos verificar os seguintes fundamentos: a imunidade tributária prevista no §7º, do artigo 195, da CF, é uma garantia fundamental, pois ela serve ao cumprimento do disposto no artigo 60, §4º, inciso IV, da CF.
As imunidades tributárias são necessárias e essenciais para a manutenção da democracia e do Estado de Direito. Portanto, a imunidade tributária prevista no §7º, do artigo 195, da CF é cláusula pétrea.
Isso significa que ela não poderia ser alterada, ou mesmo suprimida, nem por emendas constitucionais, que dirá por lei complementar que venha impor tributação indireta às instituições sem fins de lucro para serem reconhecidas como filantrópicas. A exceção dessa constatação, em casos excepcionais, como descrito na jurisprudência, admite a possibilidade de alteração das cláusulas pétreas em situações como revolução ou guerra civil, o que não é o caso.
Diante do disposto, cumpre-nos o aprofundamento do tema, visando à proposição de uma ADI, ante o ferimento material dos dispositivos da Lei Complementar nº 187/2021, que vêm a exigir contrapartidas econômicas e financeiras das instituições sem fins de lucro para obtenção do título de filantrópicas e, consequentemente, garantir a imunidade tributária, impondo dificuldades à prestação de serviços que atendem às garantias individuais da população.
Por fim, é preciso destacar o ferimento formal, pois se as emendas constitucionais não servem para alterar cláusulas pétreas, quanto mais uma Lei Complementar! Quer dizer, as cláusulas pétreas são limites materiais à reforma da Constituição e, nesse sentido, são consideradas imutáveis e não podem ser abolidas, suprimidas ou mesmo modificadas, nem mesmo por emenda constitucional.
Por: Dr. Ricardo Furtado – Consultor Jurídico, Educacional, Tributário, Especialista em Ciências Jurídicas – 16/10/2023
[1] Disposto no mérito da AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.480 DISTRITO FEDERAL.
[2] Os requisitos que devem ser atendidos estão dispostos no artigo 14 do Código Tributário Nacional – CTN