Jurisprudência
22 set 20 11:40

Justiça nega liminar com pedido de suspensão das voltas às aulas no RJ

 Decisão

Trata-se de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública em face do Estado do Rio de Janeiro, requerendo, em sede de tutela antecipada, a suspensão dos efeitos dos Decretos Estaduais nº 47.219, de 19 de agosto de 2020 e nº 47.250, de 04 de setembro de 2020, na parte em que preveem a retomada das aulas presenciais nas unidades privadas de ensino em 14 de setembro de 2020 (art. 6º, §1º), com determinação de que o réu se abstenha de expedir qualquer ato administrativo no sentido de promover o retorno às atividades educacionais presenciais nas unidades da rede privada de ensino, ainda que facultativamente, em qualquer etapa, até que: a) seja expedida a devida autorização, baseada em evidências técnico-científicas, por autoridade médica e/ou sanitária, no sentido de que é possível a retomada das referidas atividades; b) sejam apresentados os planos de ação para retomada das atividades escolares presenciais nas unidades privadas de ensino, com indicação de estudos, medidas sanitárias e número de dias letivos para composição do calendário do ano letivo de 2020, dentre outras medidas.

Ainda em sede de tutela antecipada, requereu-se a normatização do plano final da retomada das aulas presenciais nas unidades privadas de ensino e, alternativamente, a suspensão dos efeitos dos Decretos 47.219 e 47.250, na parte em que preveem a retomada das aulas presenciais nas unidades privadas de ensino em 14 de setembro de 2020 (art. 6º, §1º), até que todos os estabelecimentos de ensino sejam inspecionados pela vigilância sanitária, conforme manual recentemente desenvolvido pela Secretaria de Estado de Saúde (SES).

Com a inicial, vieram os documentos de fls. 55/320. Em fls. 322/323, petição dos autores reiterando o pedido de tutela antecipada tendo em vista as decisões proferidas pela 3ª Câmara Cível e pela Presidência deste TJRJ, juntadas em anexo.

É o relatório. Passo a decidir.

Inicialmente, vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em sede de Medida Cautelar em Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI nº 6.341), afirmou a competência concorrente de todos os entes da federação para a tomada de providências normativas e administrativas no enfrentamento do Coronavírus. Na ADI citada, discutia-se a constitucionalidade de preceitos da Medida Provisória nº 926/2020, depois convertida na Lei nº 14.035/2020:

“MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.341 DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO REQTE.(S) :PARTIDO DEMOCRATICO TRABALHISTA ADV.(A/S) :LUCAS DE CASTRO RIVAS INTDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA PROC.(A/S)(ES) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO DECISÃO SAÚDE – CRISE – CORONAVÍRUS – MEDIDA PROVISÓRIA – PROVIDÊNCIAS – LEGITIMAÇÃO CONCORRENTE. Surgem atendidos os requisitos de urgência e necessidade, no que medida provisória dispõe sobre providências no campo da saúde pública nacional, sem prejuízo da legitimação concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Vê-se que a medida provisória, ante quadro revelador de urgência e necessidade de disciplina, foi editada com a finalidade de mitigar-se a crise internacional que chegou ao Brasil, muito embora no território brasileiro ainda esteja, segundo alguns técnicos, embrionária. Há de ter-se a visão voltada ao coletivo, ou seja, à saúde pública, mostrando-se interessados todos os cidadãos. O artigo 3º, cabeça, remete às atribuições, das autoridades, quanto às medidas a serem implementadas. Não se pode ver transgressão a preceito da Constituição Federal. As providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior. Também não vinga o articulado quanto à reserva de lei complementar. Descabe a óptica no sentido de o tema somente poder ser objeto de abordagem e disciplina mediante lei de envergadura maior. Presentes urgência e necessidade de ter-se disciplina geral de abrangência nacional, há de concluir-se que, a tempo e modo, atuou o Presidente da República – Jair Bolsonaro – ao editar a Medida Provisória. O que nela se contém – repita-se à exaustão – não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios. Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.”

Na presente ação, os autores pedem a suspensão dos efeitos dos Decretos Estaduais nº 47.219, de 19 de agosto de 2020 e nº 47.250, de 04 de setembro de 2020, na parte em que preveem a retomada das aulas presenciais nas unidades privadas de ensino em 14 de setembro de 2020 (art. 6º, §1º), sob o argumento de que os Decretos, nesse particular, estão eivados de ilegalidade.

Como é cediço, o Poder Judiciário controla atos administrativos dos demais Poderes da República somente dentro dos estreitos limites da legalidade, em razão da insindicabilidade do mérito administrativo. A Constituição Federal estabelece a divisão dos Poderes e o necessário respeito aos limites de competência constitucional de cada um deles. O Sistema de Freios e Contrapesos, a seu turno, permite que seja rechaçada atuação usurpadora de competência constitucional alheia (para condutas comissivas), bem como que seja colmatada eventual lacuna no exercício integral da competência (conduta omissiva).

O Decreto é ato administrativo regulamentar ou normativo. Como todo ato administrativo, goza o Decreto de atributos, destacando-se a presunção de legalidade e legitimidade. Essa presunção milita em favor de todo ato administrativo, não se podendo partir da ideia inicial da ilegalidade: ao revés, aquele que pretende a declaração da ilegalidade deve demonstrar claramente o vício alegado.

O pedido liminar é de antecipação de tutela inaudita altera pars, devendo restar patente a ilegalidade afirmada para a suspensão dos efeitos dos Decretos em voga.

Na inicial, os autores afirmam que “os motivos de fato que fundamentaram o Decreto nº 47.250/2020 não existem ou não permitem concluir que a retomada das aulas presenciais é possível sem risco à saúde e à vida da população fluminense”. Infelizmente, durante a pandemia será impossível garantir atividades indenes de risco à saúde e à vida. Quaisquer atividades deverão ocorrer de forma a minimizar ao máximo tais riscos.

Além disso, de acordo com o brocardo jurídico, onde há a mesma razão, deve haver a mesma decisão. O Decreto atacado pelos autores não trata somente da retomada das aulas, mas também de várias outras atividades em estabelecimentos com entrada franqueada para crianças e adolescentes, tais como: pontos e locais de interesse turístico desde que limitado acesso ao público a 50% (cinquenta por cento) da sua capacidade lotação; bares, restaurantes, lanchonetes e estabelecimento congêneres; feiras livres que realizem a comercialização de produtos de gênero alimentício; lojas de conveniência, mercado de pequeno porte, açougue, aviário, padaria, lanchonete, hortifrúti e demais estabelecimentos congêneres que se destinam à venda de alimentos, bebidas, materiais de limpeza e higiene pessoal; supermercados, mercados e demais estabelecimentos comerciais que possuam em seu CNAE os serviços de varejo e comercialização de produtos alimentícios (art. 7º e incisos do Decreto Estadual nº 47.250/2020). Adicionem-se shopping centers, organizações religiosas, casas de festas, teatros, salões de beleza, lojas de comércio de rua etc. No dia de ontem foi anunciado o retorno do acesso de torcedores a jogos no Estádio do Maracanã.

A liberação do acesso a todas essas atividades, de competência dos entes da federação, é realizada de acordo com critérios que levam em conta a curva de contágio e a estrutura de atendimento hospitalar. E a decisão de permitir ou não a frequência por crianças e adolescentes é das respectivas famílias.

Notícias veiculadas diariamente indicam a queda dos números de novos casos de Covid-19 e de óbitos no estado do Rio de Janeiro, ainda que com variações. A alegação dos autores de que os relatórios são elaborados com base em dados pretéritos (cerca de 52 dias de defasagem) não pode impedir decisão em desconformidade com o requerido, porque acarretaria o total engessamento na avaliação do tema. Para decidir em um sentido ou em outro, deve-se trabalhar com o possível, ou seja, os dados oficiais disponibilizados.

As escolas particulares estão ofertando aos alunos as possibilidades de retorno às aulas presenciais ou de continuidade do ensino remoto. Isso significa que o comparecimento presencial às aulas não será obrigatório, mas sim facultativo, cabendo a decisão às famílias dos alunos.

Vale lembrar que, no mesmo sentido, a Resolução SEEDUC nº 5.854, de 30/07/2020, orienta as redes de ensino do Estado do Rio de Janeiro quanto aos protocolos sanitários e pedagógicos básicos que devem pautar as ações para o retorno às atividades escolares presenciais. Em seu item 7, ao versar acerca dos protocolos pedagógicos, deixa claro que deve ser utilizado o regime de alternância no ensino (remoto/presencial), bem como que deve ser desenvolvido, “sempre que possível, plano de trabalho domiciliar ou remoto para os alunos e professores do grupo de risco ou àqueles que não se sintam confortáveis e seguros para realizarem as atividades educacionais presenciais na unidade escolar”. Além disso, deve ser mantido, “após o retorno das atividades presenciais, o processo de aprendizagem em casa através da mediação tecnológica e outras atividades remotas, considerando que o escalonamento alternará alunos na unidade escolar e em casa”.

Questões outras estão envolvidas com o retorno das aulas presenciais, todas tangenciando a proteção de crianças e adolescentes, tais como a proteção da integridade física e psíquica, porque muitas vezes na escola é identificada a ocorrência de violência física ou sexual no âmbito familiar, com a devida comunicação aos órgãos com atribuição.

Em recente matéria jornalística, noticiou-se que a Organização Mundial da Saúde, o UNICEF e a UNESCO afirmaram que a volta às aulas deve ser prioridade na reabertura das economias (https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/09/15/oms-unicef-e-unesco-volta-as-aulas-deveser-prioridade-na-reabertura-das-economias.ghtml). Para a ONU, “durante um desconfinamento, nada é mais importante do que reabertura de estabelecimentos de ensino. A diretora do Unicef, o fundo das Nações Unidas para a infância, argumenta que escolas fechadas por muito tempo têm impacto devastador: as crianças ficam mais expostas à violência física e emocional, vulneráveis ao trabalho infantil e a abusos. Henrietta Fore acha que fica mais difícil quebrar o ciclo da pobreza”.

Há de considerar, outrossim, que os entes da federação não são estáticos na atuação para combate da pandemia, inclusive em razão da propagação do vírus. Regredindo a curva de contágio e havendo possibilidade de atendimento hospitalar, pode ser determinada a reativação de atividades com os cuidados básicos necessários. Se a curva de contaminação voltar a crescer, devem regredir tais medidas de liberação de atividades. Vemos isso atualmente, com países da Europa que já passaram pelo pico da curva de contágio e liberaram atividades, retornando com as restrições, haja vista o recente aumento de casos.

Dessa feita, se a curva de contágio aumentar muito em razão do retorno das aulas presenciais, ainda que em sistema híbrido, poderá ser determinada sua suspensão pelas autoridades administrativas autoridades sanitárias, haja vista que não compete ao Judiciário interferir na atuação quanto a políticas públicas dentro do limite legítimo da discricionariedade dos agentes políticos.

Portanto, não se vislumbra nos Decretos Estaduais nº 47.219/2020 e 47.250/2020, nas partes em que preveem a retomada das aulas presenciais nas unidades privadas de ensino em 14 de setembro de 2020 (art. 6º, §1º), ilegalidade flagrante capaz de desfazer a presunção de legalidade que permeia o ato administrativo, ao menos em sede de análise de pedido de antecipação da tutela.

Isso posto, julgo improcedente o pedido de antecipação dos efeitos da tutela de fls. 49/52.

Cite-se. Intimem-se.

Rio de Janeiro, 21/09/2020.

Sergio Luiz Ribeiro de Souza – Juiz em Exercício