QUAIS SERÃO OS IMPACTOS DA PANDEMIA EM TODA UMA GERAÇÃO DE CRIANÇAS?
Fechar as escolas foi uma das primeiras medidas adotadas pelos governantes de diversos países para conter a disseminação do novo coronavírus e frear a pandemia. No Brasil não foi diferente. A situação, que até então era provisória, já se arrastou por mais de ano. Diante deste cenário, cresce uma geração de crianças que precisou se adaptar ao isolamento social e ao ensino a distância.
Sem ir à escola e sem poder brincar com colegas, crianças perdem em socialização e sentem os impactos na educação. Por outro lado, especialistas indicam ganho em convívio familiar e potencial de desenvolvimento de habilidades e hábitos importantes para o futuro.
Até que ponto a pandemia pode afetar essa geração de crianças e quais características elas devem desenvolver após passar por tempos tão diferentes? Algumas ações podem minimizar esse impacto e responder esses questionamentos.
Como a pandemia afeta as crianças
Além das preocupações sanitárias, profissionais e financeiras, trazidas pela pandemia do novo coronavírus, pais de crianças de diferentes idades precisaram lidar com uma inquietação extra: entender – e buscar formas de minimizar – os impactos do isolamento social sobre o futuro dos pequenos.
A preocupação tem forte embasamento: a crise sanitária trouxe mudanças profundas para essa geração de crianças, alterando a rotina, diminuindo a interação com colegas, instituindo a educação a distância e, invariavelmente, ampliando o tempo de uso de telas. Essa junção de fatores e situações pode trazer impactos para o desenvolvimento, para a aprendizagem e para a sociabilização, assim como prejudicar a conquista de habilidades importantes para a vida adulta.
Neste contexto, um dos fatores que merece destaque é a rotina. A psicóloga Marina Rodrigues Bighetti Godoy, da Evolve Clínica, doutora em psicologia pela USP, explica que, para as crianças, ter as atividades organizadas ao longo do dia possibilita melhor dinâmica, otimiza o tempo e abre espaço para os novos conhecimentos serem absorvidos de maneira mais efetiva.
“A infância é uma fase da vida em que ocorrem grandes conquistas no desenvolvimento e na aprendizagem. A rotina é um recurso importantíssimo para a criança, pois evita ‘surpresas’ e traz confiança e segurança. Nesse sentido, as recorrentes mudanças ocorridas durante a pandemia, como as restrições de sair de casa, ir à escola, encontrar coleguinhas e familiares e fazer os passeios com os quais estavam acostumados funcionaram como ‘elementos surpresa’”, explica a psicóloga.
A ausência de atividades coletivas representa uma grande perda nesta fase da vida. “É nesse contexto que se pratica o respeito, a frustração, o dividir, a confiança, entre outros itens. A curto prazo essa ausência pode não aparecer, porém a longo prazo pode dar espaço para a intolerância, ansiedade e falta de recursos para lidar com o outro”, enumera Marina Rodrigues Bighetti Godoy.
Sobre o brincar, a psicóloga destaca que a atividade tem grande importância durante a infância e que a criança pode fazê-la sozinha ou com outras crianças e reforça que das duas formas há ganhos para o seu desenvolvimento, tanto interpessoal – com o outro -, como intrapessoal – consigo mesma. Porém, ao ser privada da convivência com crianças que estão na mesma fase de desenvolvimento, os pequenos tendem a passar mais tempo com adultos.
“A interação, o vocabulário e os tipos de conexão são diferentes. A criança pode acabar sendo exposta a assuntos e emoções não adequados para sua idade. Lembrando que, se há pouco espaço para a interação com o outro, é possível investir em um bom desenvolvimento intrapessoal e de conexão com os membros de sua família”, alerta.
Educação e uso de telas potencializam preocupações
A educação e a aprendizagem também estão no topo da preocupação dos pais, especialmente os que têm filhos em fase de alfabetização. Com as mudanças trazidas pela pandemia, os pais agora precisam dividir seu tempo entre os afazeres domésticos, as demandas do trabalho e o suporte com o ensino a distância dos filhos.
A doutora em psicologia considera que, neste campo, os impactos da pandemia na geração de crianças são grandes. “A começar pelo processo delicado que é o da alfabetização, ainda quando feito de maneira presencial, é necessário extremo cuidado para que o tempo de cada criança seja respeitado”, destaca.
Porém, na opinião da psicóloga, não há muito o que se fazer neste momento, uma vez que grandes questões envolvem a continuidade ou não das aulas, de forma online e presencial.
“Tão importante quanto a aprendizagem dos símbolos da nossa língua, também é momento de a criança nessa idade explorar o mundo através das brincadeiras. Por isso, vale mais a paciência do adulto em observar e criar momentos valiosos de aprendizados para a vida, bem como valores familiares, porque esses também serão recursos importantes no futuro”, pondera a psicóloga, que destaca que os pais não devem se cobrar tanto neste sentido: “Pais não são professores. Façam o seu possível e será, com certeza, o melhor para o seu filho”.
As aulas online e o maior tempo de permanência em casa somados à necessidade dos pais de dividir a atenção com diferentes demandas tem ainda outro reflexo na geração de crianças que vive a pandemia: o aumento no tempo de uso de telas e o consumo de conteúdos inadequados para a idade.
O problema não é recente, mas vem se acentuando por conta das condições atuais. A Sociedade Brasileira de Pediatria, inclusive, elaborou um manual para orientar as famílias sobre o tempo de uso adequado para cada idade e sobre quais conteúdos podem ser acessados e quais são considerados nocivos.
“A era digital chegou para ficar e, com a pandemia, limitar o tempo de uso de telas para crianças passou de tarefa difícil para quase impossível. Percebo que, na maioria das vezes, o adulto libera o uso para que a criança fique entretida e, assim, possa ter um momento de calma, resolver alguma pendência ou agilizar a alimentação da criança. Porém, esse ‘quase impossível’ nos dá a esperança de que ainda é possível controlar esse aceso”, explica Marina Rodrigues Bighetti Godoy.
A psicóloga alerta ainda que a dependência digital está descrita na Classificação Internacional de Doenças, a CID11, elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Dentre as consequências do uso excessivo de meios digitais estão, segundo esse material, o aumento dos transtornos de sono, impulsividade, ansiedade, depressão e agressividade”, enumera.
Segurança, capacidade de adaptação e equilíbrio emocional
Apesar de os impactos negativos da pandemia em toda uma geração de crianças provocarem grande preocupação nos pais, a psicóloga Marina Rodrigues Bighetti Godoy acredita que é possível, sim, extrair aprendizados e desenvolver habilidades diante das mudanças e da nova situação.
“A criança, de modo geral, tem capacidade de adaptação surpreendente. Se por um lado as crianças dessa geração devem carregar consigo marcas do distanciamento e um treinamento excessivo por limpeza, por outro, poderão se destacar no que diz respeito a esse senso de adaptação a diferentes situações”, avalia a doutora em psicologia pela USP.
Outro aspecto que pode ser aprimorado é a relação afetiva e o reconhecimento das próprias emoções, bem como a maneira de lidar com os sentimentos. “Dependendo das relações construídas nesse período entre os membros da família, também poderá ser uma geração bastante afetiva, que conhece as emoções e que sabe lidar com elas. Acredito que essa geração de crianças também não se incomodará tanto em ter momentos solitários, pois saberá ser o suficiente para si”, destaca a psicóloga, que diz acompanhar diversas famílias que se aproximaram nesses tempos sombrios e de incertezas, se reinventaram e vivenciaram mais trocas entre si do que antes da pandemia.
Como minimizar os impactos negativos da pandemia para as crianças
Pensar nos impactos que o isolamento social pode trazer para o desenvolvimento e a educação de toda uma geração de crianças é uma tarefa importante para pais e cuidadores que querem mitigar os aspectos negativos desta situação e extrair o melhor possível de cada circunstância. Confira as dicas elaboradas por Marina Rodrigues Bighetti Godoy para ajudar os pais nessa missão:
- Ambiente adequado: se possível, propicie um ambiente sem estimulação para o assunto da pandemia, evite ouvir notícias ou conversar com outro adulto quando a criança estiver por perto. Mas passe informações importantes como uso de máscara, higienização das mãos, evitar contato com objetos que outras pessoas também têm acesso, como o botão do elevador, maçanetas, etc, de forma clara e direta.
- Seja exemplo: procure seguir suas próprias orientações. Caso contrário, possivelmente, irá gerar confusão para a criança. De nada adianta o adulto orientar a criança sobre o uso da máscara, mas ele próprio fazer mau uso desta em público;
- Reforce os vínculos: para garantir um presente e um futuro sem grandes riscos para a construção emocional da criança, reforce os vínculos com ela e propicie momentos únicos. Aproveite os momentos para dizer o quanto ela é importante para você, o quanto é bom brincar com ela, e ser a mãe/pai/tio/tia/avó/avô dela. Conectar-se com a criança é fundamental;
- Doses extras de afeto: o afeto é capaz de superar qualquer dificuldade. O ponto-chave para muitas famílias neste momento tem sido a conexão entre os seus membros. Busque valorizar os momentos juntos e, para isso, não é preciso muito: uma brincadeira, uma conversa no momento de dormir, um passeio ao ar livre;
- Saiba lidar com suas inseguranças: é preciso que o adulto faça o exercício de lidar com suas inseguranças e frustrações longe da presença da criança: quando não estiver bem, saia de cena, nem que seja por alguns minutos, e retorne por inteiro para interagir e ouvir ativamente as necessidades da criança;
- Não se cobre tanto: tenha em mente que ninguém é perfeito. As tentativas de fazer o bem bastam, por isso, permita-se aprender com cada acontecimento e não se esqueça de que estamos em constante transformação.
Fonte: Consumidor Moderno, acesso em 21/04/2021
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