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09 fev 22 14:12

Por que o corte etário ainda é assunto dos tribunais? A quem cabe decidir, tecnicamente, se uma criança está apta a progredir ou regredir uma série?

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) determina que o ingresso na pré-escola deve ocorrer aos 4 anos de idade completos, ocasião em que a educação se torna obrigatória; e que a criança deve ingressar no Ensino Fundamental aos 6 anos de idade completos.

O corte etário consiste, portanto, na definição de quando se consideram os anos completos. A questão, por sua vez, não é simples e divide opiniões de especialistas.

 

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Até 2018, cada Estado definia sua data de corte etário, o que gerava disparidades especialmente quando a criança tinha que se mudar de Estado. Por exemplo, no Estado de São Paulo, o corte etário era 30 de junho, enquanto no Rio de Janeiro era 31 de dezembro. Assim, uma criança que estudava no Rio de Janeiro, nascida em 1º de julho e que completasse quatro anos naquele ano letivo, já estava matriculada na pré-escola, poderia enfrentar dificuldades caso tivesse que estudar em São Paulo. Isso porque não teria 4 anos completos, por ter nascido um dia após a data de corte, o que ocasionaria em regressão escolar.

Essa situação motivou a propositura de ação judicial perante o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou a constitucionalidade dos artigos da LDB e determinou que o MEC definisse, em nível nacional, a data de corte, uniformizando-a para todo o país. Assim, a Resolução n. 2, de outubro de 2018, do MEC, definiu a data de corte como 31 de março. Para o MEC, a definição também contribuiria para acabar com a judicialização do assunto, que todo ano lotava os tribunais de todo o país.

No ano seguinte, escolas de todo o país tiveram que se adaptar à nova regra, que, por sua vez, manteve o direito de continuidade daqueles que, mesmo fora da data de corte, já estavam matriculados na rede de ensino, evitando-se repetência de etapa escolar.

No entanto, o que parecia ter resolvido o problema na verdade ocasionou outros problemas que hoje são desafios para a rede escolar. Isto é, existem situações em que os pais se insurgem ao Judiciário para retenção ou progressão de seu filho na rede escolar durante a pré-escola ou ingresso no Ensino Fundamental, tendo em vista a impossibilidade de a escola realizar esses atos por si só.

Mesmo que as escolas observem o desenvolvimento da criança e a construção de sua individualidade, junto com a percepção das habilidades próprias da primeira infância, elas devem seguir somente o critério etário, de modo que devem obrigatoriamente, segundo a interpretação predominante, promover a progressão do aluno, ainda que o melhor interesse para a criança seja a de permanecer mais um período na Educação Infantil, por exemplo.

Durante a pandemia esse problema se intensificou. A Educação Infantil foi a mais afetada pois os alunos não tiveram ou tiveram pouca interação social entre os colegas, tornando dificultoso o desenvolvimento de habilidades próprias desta etapa de ensino, especialmente porque as escolas ficaram fechadas, somente com aulas online. Essa perda não pode ser suprida na etapa subsequente, e a criança simplesmente não pode refazer o mesmo período letivo porque a regra do corte etário veda a retenção na Educação Infantil.

Ainda que a escola e os pais estejam de acordo sobre a retenção de uma criança de dois anos na creche, nada podem fazer a não ser matriculá-lo na etapa subsequente no próximo ano letivo.

Em resumo, a regra uniformiza a ponto de não abrir espaço para tratar sobre as peculiaridades de desenvolvimento de cada indivíduo e para que a escola tenha maior grau de autonomia.

Resta aos pais, nessa circunstância, somente a via judicial — aqueles que possuem recursos para tanto. A regra em vigor, a Resolução n. 2, não permite qualquer autonomia da escola para avaliar qual melhor momento, dentro da faixa etária, de acordo com o melhor interesse da criança, que deve ser o vetor interpretativo (CF, art. 227). Ou seja, lhe é vedado estipular data distinta, mesmo em função do desenvolvimento da criança.

A ação é proposta perante a Vara da Infância e Juventude (se a localidade tiver essa vara especializada em sua jurisdição, caso contrário será apreciada por juízo de vara única) e deve contar, por envolver menor, com a participação do Ministério Público enquanto fiscal da lei. Na fase de liminar, os juízes costumam avaliar o pleito em conjunto com documentos que reforçam a necessidade de retenção ou progressão do menor, que tratem sobre seu desenvolvimento intelectual e físico, como relatórios escolares e laudos psicopedagógicos. Esses documentos podem ajudar no convencimento do magistrado, reforçando-se o argumento de que o melhor interesse da criança, de acordo com suas características individuais, deve se sobrepor ao critério etário.

No entanto, a ação pode levar algumas semanas, ser necessário interpor recursos ou mesmo aguardar o trâmite de cada ato processual. Combinar esses fatores com a proximidade do ano letivo é um desafio, pois as ações costumam ser propostas nos finais dos anos letivos para que seja possível garantir o direito até o início do ano letivo subsequente, sem afetar, por isso, o planejamento escolar. Embora essa seja uma estratégia, nem sempre é o que acontece. Por conta da sobrecarga de trabalho, ou mesmo de outros fatores, a decisão pode vir tardiamente, ou mesmo após o início do ano letivo, o que impacta na adaptação escolar do aluno, cujas consequências podem se tornar mais complexas.

Por isso, a Resolução n. 2, de 2018, não foi capaz de restringir a judicialização dos casos, pois, como destacaremos a seguir, as situações conflituosas continuam a acontecer e acontecerão a cada ano, tendo em vista que a escola não tem qualquer ingerência sobre a rígida regra do corte etário.

Não somente situações limítrofes serão levadas ao Judiciário, mas aquelas em que os pais tenham condições financeiras para que seja realizada análise mais adequada sobre o caso de seu filho, e que também estejam dispostos a enfrentar a morosidade do Judiciário.

 

Diante desse cenário, que envolve regras educacionais e o desenvolvimento individual de cada aluno, fica ao Poder judiciário árdua tarefa se compatibilizar tantos interesses que cercam a mesma regra.

O lapso entre a publicação da Resolução n. 2/2018 e os dias atuais faz com que muitos casos ainda se enquadrem na regra de transição. No entanto, começam a ter casos de crianças nascidas após a publicação da resolução, para as quais já se aplica a nova regra mesmo no Maternal e Berçário, a fim de promover a adequação ao corte etário nos anos subsequentes.

Nota-se também situações de crianças que nasceram poucos dias após 31 de março que requerem a progressão em razão da proximidade da data, o que tornaria o pleito razoável e proporcional, ao ser avaliado em concomitância com o desenvolvimento psíquico do indivíduo. Considere-se, ainda, casos de crianças que possuem deficiência intelectual que precisam ser incluídas no ambiente escolar, sem prejuízo para seu desenvolvimento e convívio com outras crianças.

Esse é um forte indicativo de que o corte etário ainda não se tornou “águas passadas” no cenário jurídico. A pergunta que muitas escolas e pais se fazem diante da regra é: o corte etário está acima da capacidade individual de cada aluno? A quem cabe decidir, tecnicamente, se uma criança está apta a progredir ou regredir uma série?

Casos decididos pelos Tribunais de Justiça[1], abordando o corte etário, após a publicação da Resolução n. 2/2018, evidenciam a confirmação ou reforma de decisão de primeira instância. Ressalte-se que o caso somente chega ao Tribunal de Justiça quando já apreciado pela primeira instância, o que necessita de maior lapso temporal.

Observamos que os tribunais garantem o melhor interesse da criança, destacando o art. 208, V, da Constituição Federal, que trata da adequação das regras educacionais à situação individual do aluno, por meio da aferição da capacidade de cada um. A regra é interpretada sob o ponto de vista do infante em questão, ressaltando-se a necessidade de se observar o melhor interesse para a criança, naquele caso concreto, que se constitui de vetor interpretativo para casos envolvendo menores de idade.

É notável que os casos são no sentido de garantir o direito pleiteado pelos pais a respeito de seus filhos, o que propicia flexibilização na interpretação da regra do corte etário. No entanto, somente pais que tenham condições de arcar com honorários advocatícios podem buscar a salvaguarda desse direito, cujo acesso é mais restrito, por isso, à maior parcela da população brasileira.

As escolas, por sua vez, não possuem autonomia para tratar sobre a flexibilização do corte etário junto às autoridades de ensino e nem mesmo é necessária sua manifestação no processo judicial, restringindo o papel dos docentes que lidam diretamente com aquele aluno na disputa por interpretação mais flexível da regra, que será definida pelo Poder Judiciário.

A alta demanda de casos que ainda persiste é sintomático dessa ausência de autonomia da escola. Com base na regulação aplicável, as escolas de Educação Infantil devem realizar relatórios sobre seus alunos, embora não possa avaliá-los para fins de progressão ou retenção (LDB, art. 31, I).

Essa avaliação proibitiva é aquela que sujeita o aluno, uma criança de pouca idade, a provas e exames, o que não se relaciona ao relatório elaborado pela escola, com base na expertise de seus docentes e de sua proposta pedagógica, que podem sugerir mudanças no percurso educacional daquele indivíduo.

Por isso, o mais adequado, em termos de regulação de ensino e de aplicação de suas regras em nível nacional, consiste na alteração da regra do CNE, a Resolução n. 2, de 2018, para o fim de garantir adequação do nível escolar ao melhor interesse da criança.

Fonte: Jota, acesso em 09/02/22

 


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