PAIS DE CRIANÇA MORDIDA EM CRECHE SERÃO INDENIZADOS
A 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a Prefeitura de São Manuel a pagar 30 salários mínimos a título de indenização por danos morais aos pais de uma criança em razão de agressão sofrida em escola do município.
A vítima, que tinha menos de dois anos à época dos fatos, recebeu diversas mordidas de outro bebê matriculado na instituição. O incidente já havia ocorrido em duas outras oportunidades, motivo pelo qual os pais ajuizaram ação alegando omissão e falha no serviço público, uma vez que não houve vigilância e socorro adequados.
Para o relator do processo, desembargador José Maria Câmara Junior, não é normal admitir as lesões corporais das crianças sob a custódia do serviço público e, diante desse fato, é correto o dever de indenizar. “A prova dos autos sugere que a falha no dever de guarda pode ter sido agravada em razão de desfalque na equipe de atendimento às crianças, uma vez que parte da equipe estava ausente no dia do acidente. Diante dos meios de prova carreados durante a marcha processual, reconheço que a falha estatal é, assim, causa para o evento danoso”, concluiu.
Os desembargadores Oswaldo Luiz Palu e Jeferson Moreira de Carvalho também participaram do julgamento e acompanharam o voto do relator.
Registro: 2015.0000302182
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 0004492-24.2012.8.26.0581, da Comarca de São Manuel, em que é apelante PREFEITURA MUNICIPAL DE SAO MANUEL, são apelados YASMIN PEDROSO ALVES (MENOR) e LUCILENA DE FATIMA PEDROSO (REPRESENTADO(A) POR SUA MÃE).
ACORDAM, em 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso. V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos.
Desembargadores CARLOS EDUARDO PACHI (Presidente sem voto),
OSWALDO LUIZ PALU E MOREIRA DE CARVALHO.
São Paulo, 6 de maio de 2015
JOSÉ MARIA CÂMARA JUNIOR
RELATOR
Assinatura Eletrônica
Voto n. 9561
Apelação n. 0004492-24.2012.8.26.0581
Comarca: São Manuel
Natureza: Responsabilidade do Estado
Apelante: Município de São Manuel
Apelado: Yasmin Pedroso Alves (menor representado)
RELATOR JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM 2º GRAU JOSÉ MARIA CÂMARA JUNIOR
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ACIDENTE EM ESCOLA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. ACIDENTE EM CRECHE MUNICIPAL. MORDIDA ENTRE CRIANÇAS. Meios de prova determinam o dever de indenizar atribuído ao Município. Falha do serviço. A controvérsia gravita em torno da dinâmica dos fatos que envolveram o acidente em que a autora, à época com menos de dois anos de idade, sob os cuidados de creche municipal, foi atacada por um colega que lhe desferiu inúmeras mordidas. Falha no dever de guarda e de preservação da integridade física do menor. Repercussão moralmente danosa demonstrada.
DANO MORAL. Reparação a título de dano moral fixada em 30 salários mínimos. Repercussão moralmente danosa comprovada. Sofrimento além dos dissabores determinados pela vida em sociedade. Valor razoável arbitrado pela sentença.
RECURSOS NÃO PROVIDO.
MUNICÍPIO DE SÃO MANUEL, inconformado com a respeitável sentença de fls. 104/108, que julgou procedente o pedido mediato, interpôs recurso de apelação, sustentando, em síntese, (i) a imprevisibilidade do acidente; (ii) a inexistência de culpa dos agentes municipais como causa para o evento danoso; (iii) a inocorrência de dano moral indenizável.
Sem contrarrazões, o recurso foi regularmente processado.
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 126/127).
É o relatório.
A controvérsia gravita em torno da responsabilidade do Município pelos danos sofridos pela autora durante o período letivo em creche municipal. A causa de pedir registra que a menor, que contava à época com menos de dois anos de idade, foi alvo de agressões de outra criança matriculada na instituição. O episódio narrado pela petição inicial envolve a lesão sofrida pela autora decorrente de reiteradas mordidas desferidas por outro menor de sua mesma faixa etária.
O artigo 37, § 6º, da CF/88 recepciona a responsabilidade civil se houver dano provocado pelo serviço público e, para tanto, o sistema adota a teoria do risco administrativo, que dispensa o lesado da comprovação da culpa da Administração para obter indenização.
Acontece que a dispensa da demonstração de culpa não retira do Estado a possibilidade de provar que o evento danosa resulta de culpa da vítima e, com isso, excluir sua responsabilidade, porquanto não há falar no risco integral.
A teoria do risco administrativo “não significa que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa apenas e tão-somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização” (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Malheiros, 29ª ed., 2004, pág. 627).
Conclui-se que não será possível estender às cegas o risco integral que se extrai da responsabilidade objetiva do Estado, na medida em que tal raciocínio inexoravelmente irá determinar o dever de indenizar da Administração por todos os eventos lesivos experimentados pelos particulares em razão de sua conduta.
A“causa petendi” e a resistência instaurada com a resposta do Município qualificam o tratamento da matéria sob o enfoque da responsabilidade subjetiva, porquanto a dinâmica dos fatos relevantes para o deslinde da lide retrata a falha do serviço público de ensino municipal o que induz a aplicação da teoria da responsabilidade subjetiva por ato omissivo.
O ponto central da causa de pedir versa sobre a alegada omissão e falha do serviço público, considerando, para tanto, que não ocorreu vigilância e socorro adequados à menor.
Segundo registro feito pela doutrina, “é mister acentuar que a responsabilidade por “falta de serviço”, falha do serviço ou culpa do serviço (‘faute du service’, seja qual for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós e alhures, às vezes, tem-se inadvertidamente suposto. É responsabilidade subjetiva porque baseada em culpa (ou dolo), como sempre advertiu o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Com efeito, para sua deflagração não basta a mera objetividade de um dano relacionado com um serviço estatal. Cumpre que exista algo mais, ou seja, culpa (ou dolo), elemento tipificador da responsabilidade subjetiva” (Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 29ª edição, Ed. Malheiros, 2012, p. 1.020).
Certamente, “se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. (…)” (Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 27ª edição, Ed. Malheiros, 2010, p. 1014).
Tratando-se de responsabilidade subjetiva, ao Estado incumbe o ônus probatório, pois “nos casos de ‘falta de serviço’ é de admitir-se uma presunção de culpa do Poder Público, sem o quê o administrado ficaria em posição extremamente frágil ou até mesmo desprotegido ante a dificuldade ou até mesmo impossibilidade de demonstrar que o serviço não se desempenhou como deveria” (Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 27ª edição, Ed. Malheiros, 2010, p. 1015).
Cabe ao Município, portanto, demonstrar ter se cercado de todos os cuidados para evitar o evento danoso.
As partes não controvertem em relação ao envolvimento do menor no acidente, tampouco quanto à lesão sofrida e o contato para que a sua progenitora fosse busca-lo na creche. A divergência diz respeito ao contexto do acidente envolvendo as duas crianças sob a guarda das monitoras ali presentes. Na verdade, o Município reconhece a ocorrência da fatalidade, atribuindo-a a infortúnio que acomete diversas crianças em tenra idade. Afirma que é comum na idade em que se encontram os envolvidos incidentes envolvendo mordidas, fazendo parte da descoberta da fase psicológica de desenvolvimento da respectiva faixa etária.
Da prova documental é possível extrair de forma segura a dinâmica dos fatos envolvendo o incidente, notadamente ante a instrução realizada em sede de inquérito policial (fls. 24/62).
Tomado depoimento na delegacia de polícia da funcionária que presenciou o ataque e socorreu a autora, a berçarista Maria Aparecida Abili Bortolazo declarou que a instituição estava consciente dos problemas de relacionamento envolvendo o perpetrador das mordidas e a vítima do ataque (fls. 46 e seguintes). Inclusive, quando ouviu o grito das crianças, de imediato tirou o agressor de cima da autora. Acontece que voltou para o trocador onde havia deixado outra criança, momento em que novamente o agressor retornou a deferir mordidas na vítima, dessa vez “mais determinado”, e que “foi difícil retirá-lo das mordidas”.
Os documentos de fls. 41/42 demonstram que o incidente já havia ocorrido em duas outras oportunidades, mas os ataques não resultaram em lesões tão graves. As ilustrações fotográficas permitem constatar as lesões sofridas.
Como se vê, ainda que a funcionária tenha prestado prontamente socorro a vítima em todas as oportunidades, não é possível afirmar a ausência de previsibilidade do acidente. A uma, porque o agressor já havia manifestado desafeto em relação à vítima, mordendo-a em outras oportunidades. Tal desavença era de conhecimento inclusive da diretoria da creche, que comunicou os pais das crianças envolvidas. A duas, porque o próprio Município reconhece que é comum o desfecho de mordidas na faixa etária em que se encontram as crianças.
Diante da previsibilidade da conduta do agressor e da não adoção de medidas para evitar a sua reincidência, não é possível qualificar o incidente como mero infortúnio.
Não subsistem os argumentos empregados pelo Município nas razões de recorrer. O apelante considera normal o fato que, na verdade, é comum. Parece-me correto interpretar que não é normal admitir as lesões corporais das crianças sob a custódia do serviço público. Diante do fato impõe o reconhecimento do dever de indenizar.
Ao contrário, a prova dos autos sugere que a falha no dever de guarda pode ter sido agravada em razão de desfalque na equipe de atendimento às crianças, uma vez que parta da equipe estava ausente no dia do acidente (fls. 50/51).
Como se vê, diante dos meios de prova carreados durante a marcha processual, reconheço que a falha estatal é, assim, causa para o evento danoso.
Em regra, a configuração de responsabilidade do Estado está escorada no dever de guarda que acomete às creches, e que é frustrado pelos estabelecimentos quando os pais constatam que seus filhos sofreram algum tipo de lesão. Nesse sentido, a doutrina:
“Ao receber o estudante menor, confiado ao estabelecimento de ensino da rede oficial ou da rede particular para as atividades curriculares, de recreação, aprendizado e formação escolar, a entidade de ensino fica investida no dever de guarda e preservação da integridade física do aluno, com a obrigação de empregar a mais diligente vigilância, para prevenir e evitar qualquer ofensa ou dano aos seus pupilos, que possam resultar do convício escolar” (Rui Stocco, ‘Tratado de Responsabilidade Civil’, 7ª ed., São Paulo: RT, 2007, p. 1.107).
O dano é evidente. Ainda que a autora não seja capaz de exprimir eventuais frustrações de ordem psíquicas, é de se presumir o abalo emocional decorrente dos reiterados ataques sofridos.
A indenização por dano moral tem sido admitida como forma de mitigar o sofrimento experimentado pela vítima, compensando-se suas angústias, dores, aflições, constrangimentos e, enfim, as situações vexatórias em geral, impondo-se ao seu responsável pena pecuniária pelo mal causado.
Os danos morais “são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, em contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico. (…) o patrimônio moral decorre dos bens da alma e os danos que dele se originam seriam, singelamente, danos da alma, para usar da expressão do evangelista São Mateus, lembrada por Fischer e reproduzida por Aguiar D” (Wilson Mello da Silva, O Dano Moral e sua Reparação, Editora Forense, 2ª edição, p. 13).
Nesse cenário, o julgador deverá “decidir de acordo com os elementos de que, em concreto, dispuser” (Carlos Alberto Bittar, O Direito Civil na Constituição de 1988, RT, 1990, p. 104), valendo-se, para tanto, de certa discricionariedade na apuração da indenização, de molde a evitar o enriquecimento sem causa. Neste aspecto, imprescindível considerar o grau de culpa, o dano em si, as condições econômicas e sociais da vítima e do ofensor, razão pela qual considero adequado o valor atribuído pelo juízo “a quo”.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso.
JOSÉ MARIA CÂMARA JUNIOR
Relator